Categoria: Igreja
http://www.aplicativosieclb.org.br/docs/2020.02_Carta_Pastoral.pdf
“Eu escolhi vocês para que deem fruto” (João 15.16)
Presidência IECLB no 279132/20
Deus comprou vocês por um preço; portanto, não se tornem escravos de seres humanos (1 Coríntios 7.23).
Em 2020, lembramos 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Um dos fatos marcantes de 1945 foi a libertação das pessoas aprisionadas em Auschwitz, o maior campo de concentração do regime nazista. Somente ali foram mortas mais de um milhão de pessoas. A maioria era judia e nem foi registrada como prisioneira, mas assassinada em câmaras de gás logo após a chegada. Os corpos eram incinerados em enormes fornos. Auschwitz tinha capacidade para cremar até 4.700 corpos por dia.
As pessoas aprisionadas e assassinadas nos campos de concentração foram trazidas de diversos lugares da Europa, amontoadas em comboios de trem. Eram mulheres e homens, pessoas idosas, jovens e crianças, vítimas de uma ideologia perversa. Tal ideologia se caracterizava pela ideia de supremacia da pessoa branca, pelo nacionalismo, pelo ódio ao povo judeu, por intolerância e violência. O regime nazista exercia controle social através do militarismo e de grupos paramilitares, da censura e da propaganda. Por muito tempo conseguiu acobertar seus terríveis crimes. Os portões dos campos de concentração ostentavam a frase “o trabalho liberta”, mas esses campos eram verdadeiras indústrias de escravidão e morte.
Ideologias são um conjunto de ideias, valores e normas. Não são necessariamente malignas, mas algumas são opressoras e podem mascarar sua maldade usando o nome de Deus. Nas palavras de Jesus, são como falsos profetas, que se apresentam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes (Mateus 7.15). Hitler sabia muito bem usar a linguagem religiosa. Talvez por isto conseguiu o apoio de uma considerável parcela da população cristã na Alemanha. Também no Brasil havia pessoas de comunidades cristãs que se identificavam com o nazismo. Com inquietação e tristeza, percebemos que ainda há pessoas que defendem ideias semelhantes.
Um regime cruel e diabólico como o nazismo não nasce de um dia para o outro. A perseguição a pessoas judias iniciou aos poucos. A ideia de uma “raça superior” foi se expandindo passo a passo. Por isto é preciso atenção a sintomas que se manifestam. Neste sentido, a palavra bíblica para o mês de fevereiro é um chamado para vigiar. Deus nos comprou por um preço: o sangue de Jesus. Não podemos nos deixar influenciar e escravizar por ideologias malignas, que atentam contra a dignidade da vida e da criação de Deus.
Considerar que uma pessoa negra ou indígena não é gente, ou não evoluiu o suficiente, revela preconceito e a malícia da supremacia de um ser humano sobre outro. O racismo, a discriminação, a hostilidade em relação a pessoas estrangeiras e migrantes, a destruição do meio ambiente, são igualmente sinais graves.
Não podemos esquecer ou negar a crueldade do nazismo e de outros sistemas totalitários. Não temos responsabilidade pelo que aconteceu no passado, mas temos o dever de evitar que novas bestialidades sejam geradas. É necessário também pedir perdão por qualquer envolvimento da Igreja em atrocidades. A partir do Evangelho de Jesus Cristo, repudiamos toda forma de opressão e escravidão. Deus nos chama para viver o amor, praticar misericórdia, buscar equidade e promover a paz.
Ainda o antigo nos tortura, o peso de maus dias dá amargura.
Senhor, dá a nossas almas acuadas a salvação à qual são preparadas.
Por bons poderes muito bem guardados, confiantes esperamos o que há de vir. Deus é conosco sempre noite e dia. Assim é certa hoje sua alegria.
(Hino de Dietrich Bonhoeffer, Pastor Luterano, preso em campo de concentração e morto pelo regime nazista)
Saudações em Cristo,
Pa. Sílvia Beatrice Genz Pastora Presidente
P. Odair Airton Braun Pastor 1o Vice-Presidente
P. Dr. Mauro Batista de Souza Pastor 2o Vice-Presidente
Mutirão pela Paz!
Mas o Espírito de Deus produz o amor, a alegria, a paz, a paciência, a delicadeza, a bondade, a fidelidade, a humildade e o domínio próprio. E contra essas coisas não existe lei. (Gl 5.22-23a)
A paz é um fruto do Espírito de Deus.
A paz é um fruto do Espírito de Deus. Não é por acaso. Ela faz parte da essência do Evangelho, a boa nova de grande alegria. Após o nascimento de Jesus a boa nova é o fim do medo e o desejo de que se instaure a “paz na terra entre as pessoas a quem ele quer bem” (Lc 2.14). Também não é por acaso que após a sua ressurreição, a primeira palavra que Jesus dirige aos seus seguidores é de que não tenham medo e “paz seja convosco” (Jo 20.19). É fundamental que o anúncio do Evangelho seja conduzido sem medo e pela prática da paz, conforme a proposta do Reino de Deus, testemunhado publicamente por Jesus de Nazaré. “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5.9).
No primeiro dia do ano celebramos mundialmente o Dia da Paz. A Pastoral Popular Luterana vem nesta ocasião, reafirmar a sua tarefa evangélica e profética de promover e educar para a paz. Enquanto houver palavras e ações humanas que promovem o poder, a violência e a exclusão de outros seres humanos, que são igualmente imagem e semelhança de Deus, igualmente revestidos por Deus de dignidade,
Condenamos:
– os discursos vulgares e ações agressivas contra as minorias: homofobia, racismo, misoginia e afins;
– as propagandas e politicas de segurança enganosas que visam popularizar o porte e posse de armas de fogo, alegando segurança e diminuição da violência;
– o fundamentalismo religioso que manipula a Palavra de Deus e dela faz uso para a prática da violência contra manifestações religiosas minoritárias;
– a intolerância religiosa promovida por ideologias que não tem bom senso e respeito mínimo à diversidade;
– a violência protagonizada por discurso religioso e político contra os povos indígenas, a população negra e os pobres;
– a violência do Estado contra movimentos sociais, movimentos populares que buscam manter os seus direitos e lutam por justiça e democracia;
– a disseminação de mentiras pelo oligopólio midiático e redes sociais, promovendo uma onda de desinformação que, na prática, restringe o direito à comunicação;
– os rumos da desastrosa política ambiental no governo com a revisão do Código Florestal e das Unidades de Conservação que apoia a prática e a impunidade aos crimes ambientais;
– os desmontes na educação em níveis federal e estadual, que sucateiam o magistério e visam destruir o pensamento crítico e perpetuar a manutenção das desigualdades.
o acobertamento institucionalizado de movimentos fascistas e nazistas;
Como promotores da paz (pacificadores), nossa responsabilidade pastoral nos compromete com a educação para a paz. Paz é poder viver feliz, estar completamente bem, estar cercado de tudo o que se precisa para estar satisfeito. E tal experiencia de paz deve estar acessível a todos os seres humanos. Caso isso não ocorra, jamais teremos paz. Precisamos juntar forças com todas as entidades parceiras e pessoas de boa vontade que buscam e se empenham pelo Reino de paz, amor e justiça. Nesse sentido, a Pastoral Popular Luterana reafirma este seu compromisso: o bem estar pleno (Shalom),
Manifestamos nossos votos e nosso desejo de parceria pela edificação da verdadeira paz, aquela que Cristo nos dá. Que o Espírito de Deus nos mova para isso! “Vem, entra na roda com a gente também!”
31 de dezembro 2019
Coordenação Nacional da PPL
A IECLB lançou o tema do ano para 2020 – Viver o Batismo. Somos chamados e chamadas a dar bons frutos! Visite o Portal Luteranos, assista e compartilhe!
“VIVER O BATISMO! O Tema do Ano da IECLB em 2020 é “Viver o Batismo”! Este Tema tem tudo a ver conosco. O que é Batismo para nós? Como podemos viver o Batismo?
O que é o Batismo? Batismo é um sacramento. Sacramentos são meios que Deus utiliza para nos dar perdão e salvação. Na Igreja Luterana temos dois sacramentos: o Batismo e a Santa Ceia. Esses sacramentos contêm a promessa da graça de Deus e foram instituídos por Jesus Cristo. Ou seja: nós batizamos e participamos da Ceia porque esta é a vontade de Jesus.
O que o Batismo faz? O Batismo realiza em nós o perdão dos pecados. Unida à palavra de Deus, a água do Batismo afoga o nosso pecado e nos dá vida nova. Estamos livres para fazer o bem, mas não estamos totalmente livres do mal. Durante toda a vida, vamos conviver com o fato de sermos pessoas ao mesmo tempo justificadas e pecadoras. Mas qual seria então o benefício do Batismo, se ele não afasta completamente de nós o pecado? O benefício é que Deus se alia conosco na luta contra o pecado. O Batismo pode ser comparado a uma roupa que se usa todos os dias para vencer o mal e permanecer na fé.
Com que idade nós batizamos? A IECLB admite ao Batismo crianças, pessoas jovens e adultas. Nós batizamos crianças porque reconhecemos que a graça de Deus não depende do nosso mérito e entendimento. Como escreveu Martim Lutero, “levamos a criança com a ideia e na esperança de que ela acredite, e rogamos que Deus lhe dê a fé”. Por meio da fé, a pessoa batizada recebe o que Deus lhe prometeu no Batismo. É importante lembrar que também a fé não é obra humana: é um dom de Deus! “Há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo” (Efésios 4.5). Por ser obra de Deus, o Batismo acontece uma só vez e vale para toda a vida.
O Batismo cria vínculos. Ele nos une a Jesus Cristo e nos agracia com o Espírito Santo. A pessoa batizada em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo está colocada sob o âmbito da ação do trino Deus. O Batismo nos integra ao corpo de Cristo e a uma Comunidade. Por isto costumamos dizer que a IECLB é o convívio de pessoas batizadas, todas elas chamadas para viverem o seu Batismo.
Cada pessoa, a partir do Batismo e da fé, é chamada para testemunhar a palavra de Deus e participar da obra de Deus no mundo. Todas e todos nós fazemos parte do “sacerdócio de todas as pessoas que creem”. Esse sacerdócio é um privilégio: Deus nos concede o privilégio de sermos instrumentos do seu agir.
O tema do Ano é acompanhado por uma palavra de Jesus que diz: “Eu escolhi vocês para que deem fruto”. Qual é o fruto que se espera da pessoa batizada? O próprio Jesus nos dá a resposta no capítulo 15 do Evangelho de João:
– Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada.
– Como o Pai me amou, também eu amei vocês; permaneçam no meu amor.
– Se vocês guardarem os meus mandamentos, permanecerão no meu amor.
– O meu mandamento é este: que vocês amem uns aos outros, assim como eu os amei.
Dar fruto outra coisa não é do que transmitir o amor que recebemos de Deus. Tudo o que Deus faz é motivado por amor. Vamos nós também fazer do amor a base da nossa ação. Que o Tema do Ano nos desafie para reflexão e ação. Vamos viver o Batismo lembrando as palavras de Jesus: “Eu escolhi vocês para que deem fruto”.”
Pa. Sílvia Beatrice Genz
Pastora Presidente
P. Odair Airton Braun
Pastor 1º Vice-Presidente
P. Dr. Mauro Batista de Souza
Pastor 2º Vice-Presidente
https://www.luteranos.com.br/textos/lancamento-do-tema-do-ano-2020
Nossa responsabilidade social
Na sua história a IECLB emitiu considerável número de posicionamentos e manifestos tendo um vista a realidade econômica, politica e social do Brasil a partir de Concílios da Igreja. A cada tempo ou situação histórica concreta a Igreja o fez na tentativa de corresponder à sua tarefa proféticA, ser e permanecer fiel ao Evangelho de Jesus Cristo.
No período da ditadura militar produziu o Manifesto de Curitiba – VII Concílio Geral em Curitiba nos dias 22 a 25 de outubro de 1970. De forma tímida o manifesto consegue expressar algumas criticas ao sistema de governo e à realidade socio política.
Já o documento do Concilio de Joinville, entitulado “Nossa Responsabilidade Social”, de 22/10/1978 vai ser mais explicito quanto ao papel profético da Igreja e de fidelidade ao Evangelho.
“Contudo, onde a consciência acusa, o Evangelho levanta a voz profética para chamar ao arrependimento, à libertação e à mudança radical (Mc 1.15).”
A partir do Evangelho tornam-se legítimos os questionamentos e a decisão de uma opção preferencial pelas vítimas da economia, politica e sociedade.
“Por isso também hoje não conseguimos ver Deus no progresso, mas sim naqueles que são por ele triturados; não no poder, mas naqueles que são por ele abatidos; não no dinheiro, mas naqueles que não tem como comprar o elementar para suas vidas (Mc 8.34-38). Deus simultaneamente padece e liberta ainda hoje. Assim a neutralidade se nos torna impossível (Rm 12.9-21). Somos chamados a tomar partido: Queremos subir na vida ou descer à cruz de nosso semelhante? Queremos nos unir ao círculo dos interessados em si mesmo ou dar as mãos para viver o amor de Cristo?”
“Todo aquele que se diz discípulo de Jesus Cristo, individualmente, é responsável, pois um cristão que é indiferente à injustiça e se furta à responsabilidade em questões sociais e econômicas, preocupando-se unicamente com o seu próprio bem-estar, não segue o seu Senhor.”
“Examinando, pois, os problemas de subsistência, habitação, saúde, educação, emprego, distribuição de renda, criminalidade, vício e outros em nosso meio, quais são os recursos de que dispõe a nossa comunidade?”
Qual a nossa responsabilidade na condição de comunidade cristã fiel ao Evangellho de Jesus de Nazaré? A pergunta de 1978 continua esperando por uma resposta.
Renato Kuntzer
Pa. Ms. Romi Márcia Bencke
“Pensar a América Latina é algo que exige saber operar com paradoxos e contradições sem superação.”
Parte 1. O mito do Brasil cristão
A chegada dos portugueses ao território, que foi chamado Brasil, inaugurou uma história de ambiguidades, contradições, paradoxos, violências e desigualdades que perduram até os tempos atuais. Estas características estão presentes quando se analisa as ações missionárias que ocorreram no país, fortemente caracterizadas pela conversação forçada dos povos originários, os indígenas.
Na obra “Brasil: uma Biografia” (2015), as autoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling recuperam com detalhes os três principais alicerces associados ao projeto colonialista português. O primeiro foi o alicerce militar. O segundo o alicerce foi a religião cristã. A estratégia colonialista compreendia que a nova terra deveria ser toda ela ofertada para Deus. Esta oferta ocorreria pela conversão dos gentios (indígenas). E, o terceiro alicerce era o mercantil, iniciando com a exploração do Pau Brasil.
Rapidamente uniram a religião com o mercantil. Os religiosos batizavam e catequizavam indígenas que eram obrigados a esquecer do seu sagrado e de sua cultura. Tudo realizado com muita violência. Uma vez “civilizados” pelo cristianismo os povos originários eram tornados escravos. Os que se rebelavam eram castigados. Talvez seja forçado associar esta prática com projeto missionário. Nos tempos atuais, esta prática estaria mais associada à instrumentalização mútua entre religião, política e economia para alcançar determinado objetivo.
Apesar da incerteza em relação ao número de povos originários que viviam no Brasil no ano de 1500, estima-se algo em torno de 3 milhões a 8 milhões de pessoas, que se dividiam em muitos povos, com distintas tradições religiosas e idiomas. O projeto colonialista dizimou um grande número destes povos. Não há dados concretos que dimensionem o que significou este etnocídio que tem perdurado desde que o Brasil se chama Brasil.
Posteriormente, a mesma prática se repetiu com os africanos e africanas trazidos para serem escravizados. O primeiro que se fazia com as pessoas africanas que pisavam em terra brasileira era batizá-las para que se tornassem gente. Compreendiam que nem indígenas e nem os africanos tinham alma. Só o batismo poderia torná-las humanas e civilizadas. Schwarcz e Starling (2015) destacam que foram trazidos à força para o Brasil 40 % das pessoas retiradas da África para trabalhar nas colônias agrícolas da América portuguesa. Isso significa “3,8 milhões de pessoas. Atualmente, 60% da população brasileira é composta por pessoas pardas e negras. Segundo as autoras, “o Brasil pode ser considerado o segundo mais populoso país africano, depois da Nigéria” (pos. 259).
Da mesma forma que os povos originários, também os povos africanos tinham as suas tradições religiosas, trouxeram do além-mar seus deuses, suas deusas, seus ritos, cantos sagrados. Muitos escravizados eram lideranças religiosas em suas tribos. O silenciamento de seus sagrados foi realizado com violência. Para seguir praticando sua tradição foi necessário criar estratégias. Os cultos aos Orixás eram realizados de madrugada, o sincretismo, que associava cada santo católico a um orixá garantiu a sobrevivência dos deuses da África.
As missões protestantes também não romperam com a lógica da missão como instrumento de conversão forçada para a fé em Jesus Cristo. Os alvos da conversão eram católicos romanos, povos originários e afro-brasileiros.
No período do Brasil Império, a Igreja Católica Romana foi a Igreja oficial do país e, posteriormente, com a proclamação da República, além da igreja Católica Romana, as igrejas do protestantismo histórico foram reconhecidas como instituições religiosas legítimas. Em função disso, até tempos recentes, o país foi considerado como o maior país cristão do mundo, especificamente, como o maior país católico do mundo.
No entanto, este brevíssimo resgate histórico, apresenta elementos para suspeitar desta afirmação repetida por muitos anos.
Para fundamentar a suspeita, recupero o conceito de bovarismo elaborado por Sérgio Buarque de Holanda (1995; p. 166) em seu clássico livro Raízes do Brasil. O autor utiliza este conceito para se referir ao sentimento insuportável de desencantamento que os brasileiros sentem diante de suas condições reais de vida. Isso significa que as pessoas se imaginam sempre diferentes do que são. É como recusar o Brasil real e imaginar um Brasil diferente daquele que realmente existe, uma vez que este país não satisfaz e as pessoas se sentem sem força para mudá-lo (pos. 291).
Arriscaria falar de um “bovarismo religioso” que surge a partir da impossibilidade de os povos originários optarem em não serem cristãos. Da mesma forma, a população afro-brasileira, ainda hoje, sente medo de declarar a sua real pertença religiosa. Geralmente, se declaram católicos romanos em função do medo da perseguição religiosa. As pessoas sem religião se apresentam desta forma a muito pouco tempo. Neste sentido, criou-se um país com uma religião hegemônica para negar-se a existência de um país que sempre foi plural em termos religiosos. O “bovarismo religioso” seria a negação de sua real pertença religiosa para poder viver um país que não assume e não reconhece a legitimidade da sua pluralidade religiosa. É como se o espelho refletisse a cruz, Buda, os instrumentos sagrados do Candomblé, o Bastão Sagrado do povo Tukano e víssemos apenas a cruz.
O Brasil é um país onde a religiosidade brota. Não são somente igrejas novas que surgem aqui. Há muitos outros movimentos religiosos que são autenticamente brasileiros, como por exemplo, o Santo Daime, que surgiu na Amazônia. No entanto, assim como há o nascimento de novas religiões, que são uma espécie de síntese de diferentes tradições religiosas, temos religiões que existiram apenas aqui, cujos sagrados foram dizimados com o seu povo. São sagrados dos quais não sabemos o nome, nem os ritos.
O Brasil é também um país de sagrados soterrados por projetos colonizadores. A cruz, neste caso, não representou salvação, mas um instrumento utilizado para aniquilar quem pudesse atrapalhar o projeto de extração das riquezas naturais.
No entanto, o sagrado, a magia ou os encantados (como dizem os povos originários) não podem ser dominados para sempre. Nos últimos anos tem acontecido um movimento muito interessante que tem rompido com o mito do país cristão. Este movimento é protagonizado por povos originários e afro-brasileiros que reivindicam o direito aos seus sagrados. Pajés, que são as lideranças religiosas indígenas, têm escrito livros com a ajuda de antropólogos onde relatam seus mitos, suas tradições, seus rituais. Destaco dois livros. O primeiro, “O Mundo Tukano antes dos Brancos”, de Álvaro Tukano e o segundo, “A queda do Céu” de Davi Kopenawa e Albert Bruce.
Também no cinema o tema da morte do sagrado original dos povos tradicionais tem sido abordado. É ocaso do filme “Ex Pajé” de Luiz Bolognezi. No filme, o pajé Perpera, se converteu para o pentecostalismo, que declarou sua antiga tradição da Pajelança como demoníaca. No decorrer do filme, Perpera, é levado a questionar esta fé cristã, porque uma de suas parentes indígenas é picada por uma cobra e está à beira da morte. Para salvá-la, ele precisa se decidir se retornará a sua antiga tradição ou não. No processo de reflexão percebe que os mais jovens não conhecem mais as antigas tradições do seu povo Paiter Suruí.
Estas iniciativas representam a resistência e a luta para não deixar morrer as várias expressões do sagrado que povoam o Brasil. Povos como os Guarani Kaiowa, que há anos resistem ao avanço do agronegócio, no Mato Grosso do Sul, têm como centro de sua resistência a preservação de suas Casas de Reza, seus espaços sagrados. As Casas de Reza são um dos primeiros lugares destruídos pelo agronegócio como forma de fragilizar as comunidades indígenas. O movimento ecumênico brasileiro tem ajudado os povos Guarani Kaiowa a reconstruir algumas destas Casas.
Da mesma maneira, os povos de Terreiro, formados pelos praticantes de religiões afro-brasileiras, têm se afirmado na resistência ao racismo religioso, manifestado na intolerância religiosa por causa da origem africana destas tradições. A intolerância manifesta-se das mais variadas formas. Apresenta-se desde violência física, na negação de crianças ou jovens praticantes destas tradições portarem seus símbolos religiosos nas escolas, projetos de leis que querem limitar a prática dos cultos e assassinatos de lideranças religiosas.
Frente a estas intolerâncias, os povos de Terreiro têm se organizado e realizado marchas e caravanas à Brasília, reivindicando o respeito à liberdade religiosa e ao estado laico, ambos garantidos pela Constituição Federal. No ano de 2015, lideranças religiosas de terreiro de todo o país se reuniram no Congresso Nacional em Brasília, trajadas com suas vestes tradicionais para denunciar a violência que tem sofrido. Foi a primeira vez em que um número tão expressivo havia se reunido no Congresso. Muitos parlamentares se negaram em reunir-se com estas lideranças.
A intolerância às tradições de Terreiro desafiou o movimento ecumênico sobre gestos concretos de solidariedade que fossem além do diálogo inter-religioso. Neste sentido, temos apoiado em diferentes estados a criação de Fóruns pela Diversidade Religiosa. No ano de 2015, foi queimado na cidade de Brasília por intolerância religiosa o Terreiro da Mãe Baiana.
Mãe Baiana é uma liderança africana importante na capital federal. Em seu Terreiro ela desenvolve muitos projetos sociais, que tiveram que ser suspensos após o incêndio. Como gesto de solidariedade, a diretoria do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – CONIC visitou oficialmente o Terreiro, junto com outras pessoas vinculadas às igrejas que integram o Conselho. O arcebispo de Brasília, Dom Sérgio da Rocha, enviou, pelas representações católicas romanas, uma carta de solidariedade à Mãe Baiana. Na visita, plantamos uma muda de Pau Brasil, árvore símbolo do país. A árvore foi um pedido de Mãe Baiana. Havíamos perguntado para ela do que precisava, pois queríamos ajudar. Ela pediu a árvore, que foi plantada segundo o rito religioso de sua tradição.
Outro gesto, concreto de solidariedade foi realizado pelo CONIC do Rio de Janeiro em novembro de 2017. Naquele ano foi incendiado o Terreiro de Mãe Conceição. O Conselho de Igrejas daquela cidade organizou uma coleta de dinheiro para ajudar na reconstrução do Terreiro. A coleta angariou R$13 mil reais que foram entregues em novembro.
Tais movimentos são movimentos de irrupção dos sagrados silenciados e soterrados. Não há como manter enterrado o que pulsa com força.
Recupero um trecho do livro “A queda do Céu,” onde o Pajé Davi Kopenawa reflete sobre a continuidade da sua tradição Yanomami:
“Apesar de todos esses lutos e prantos, nossos pensamentos acabam se acalmando. Somos capazes de caçar e de trabalhar de novo em nossas roças. Podemos recomeçar a viajar pela floresta e a fazer amizade com as pessoas de outras casas. Recomeçamos a rir com nossos filhos, a cantar em nossas festas reahu e a fazer dançar os nossos espíritos xapiri. Sabemos que eles permanecem ao nosso lado na floresta e continuam mantendo o céu no lugar”. (p. 79)
Esta irrupção dos deuses e deusas soterrados não acontece sem tensões e conflitos. Tem aumentado significativamente os casos de intolerância religiosa em especial contra as religiões de povos originários e afro-brasileiros. No entanto, a intolerância é manifestada também contra cristãos e cristãs que expressam sua solidariedade com as tradições que sofrem a intolerância. Chama a atenção como tem se tornado fácil, no Brasil, a proliferação do discurso de deslegitimação e aniquilamento público do outro em nome de Deus e de Jesus. É o que irei abordar no próximo item.
Parte 2. Os conflitos em nome de Deus
Conflito 1: Rio de Janeiro, setembro de 2017: na internet, nos jornais e na televisão chegam notícias de uma série de ataques a Terreiros de Candomblé e Umbanda. Os que atacavam, chegavam aos Terreiros armados com cassetetes, escrito “diálogo” e obrigavam as Mães e Pais de Santo a destruírem seus próprios símbolos e espaços sagrados. Os intolerantes filmavam a destruição e diziam: “olhem aí: a capeta chefe – quebra tudo…apaga a vela. O sangue de Jesus tem poder. Todo o mal tem que ser desfeito, em nome de Jesus. A senhora é o demônio-chefe”. Em alguns casos, as lideranças foram ameaçadas de morte.
Posteriormente, estes ataques, revelaram um fenômeno que tem ocorrido no Brasil, pelo menos, desde os anos de 1990, mas se intensificado nos anos 2000, que é a aproximação entre traficantes e evangélicos.
No livro “Oração de Traficante” (2015, p. 364), Cunha chama a atenção que a aproximação entre evangélicos e traficantes apresenta múltiplas formas de relação, entre as quais destacam-se: os traficantes frequentam os cultos evangélicos; participam de correntes e de campanhas das igrejas, realizam contribuições financeiras para as igrejas; fazem doações diretas às lideranças das igrejas e de dízimos; pedem proteção e livramento do Mal; promovem financiamento de eventos evangélicos na favela; promovem cultos de ação de graças; mandam pintar muros e outdoors com mensagens bíblicas.
Conflito 2: junho de 2015 – Parada Gay em São Paulo: a Transexual Viviany Belobony, que é atriz, realiza uma encenação da crucificação de Cristo para denunciar o assassinato de travestis e transexuais no Brasil. Em 2017, foram assassinadas 179 transexuais e travestis. A performance da atriz gerou grande polêmica nacional. Ela foi atacada nas redes sociais e agredida fisicamente na rua. A Associação das Igrejas Evangélicas de São Paulo denunciou Viviany ao Ministério Público por ultrajar, impedir e perturbar o culto religioso. Destaca-se que Viviany é de família cristã e quando planejou a sua apresentação tinha em mente o significado da cruz como símbolo da violência. A Igreja Episcopal Anglicana convidou Viviany para participar de um seminário sobre diversidade sexual na igreja. Viviany foi e agradeceu a solidariedade. Destacou todo o processo de criação de sua apresentação. Foi um dos poucos espaços religiosos em que ela pôde falar sem medo.
Em todos os debates ocorridos na sociedade por causa da apresentação de Viviany o que se sobrepôs foi o de ultraje da cruz. Foram poucas as discussões sobre a violência praticada contra transexuais e travestis. É importante destacar que no ano de 2015, já estavam acontecendo muitos debates e movimentos organizados contrários à perspectiva de gênero. Estes movimentos são protagonizados por grupos cristãos conservadores de diferentes igrejas. Uma das consequências deste movimento é justamente o fortalecimento do preconceito contra gays, travestis e transexuais.
Conflito 3: ano de 2018 – contexto eleitoral brasileiro: estamos a vinte e seis dias das eleições gerais. O quadro político que se apresenta é incerto e relativamente tenso. Novamente Deus tem sido um ator importante no cenário político. Seu nome é disputado por todas as correntes políticas. Nas igrejas, é possível observar as mesmas tensões e polarizações que estão na sociedade. Irmãos brigando com irmãos.
Frente ao aumento da expressão pública do fundamentalismo cristão, as universidades brasileiras têm procurado dialogar com quem tem procurado refletir teologicamente sobre temáticas relacionadas aos direitos humanos, em especial das minorias. Entretanto, também a liberdade de reflexão e elaboração teológica tem sido pouco aceita. Para muitos membros de igrejas, o livre pensar teológico tem sido um problema, mesmo quando é realizado com responsabilidade. Nesse sentido, a pergunta é como se atualiza o testemunho cristão em um mundo cada vez mais complexo se a teologia não pode ser livre das institucionalidades.
O acirramento dos conflitos em nome de Deus, que é um conflito falso, porque a fé em Jesus Cristo convoca para a unidade (Jo 17.23-23) gera desconfiança e prejudica o testemunho cristão no espaço público. Como falar em amor se muitos de nós anunciam o ódio?
Apresentei três grandes blocos de conflitos que envolvem diretamente o testemunho cristão em uma sociedade plural. O primeiro bloco de conflito remete à pluralidade religiosa, o segundo bloco à diversidade de gênero e à pergunta se cabe a nós determinar quem pode ou não ser cristão? No Brasil, pessoas LGBTs reivindicam nas igrejas o seu direito de ser cristãs e nem sempre são aceitas. E, por fim, o bloco três, tem a ver com a instrumentalização do nome de Deus para a legitimação de interesses políticos institucionais e a falta de liberdade teológica para qualificar as discussões relacionadas sobre religião e direitos humanos.
Esta breve síntese dos principais conflitos apresentados pela sociedade plural contribuirão para a elaborar alguns desafios para o testemunho cristão no Brasil.
Para não concluir: desafios para ensaiar o testemunho cristão em um Brasil plural
O primeiro desafio para o testemunho cristão em contexto brasileiro é superar o que chamamos de “bovarismo religioso”, reconhecendo a existência e a legitimidade da pluralidade brasileira. Há uma resistência de parte significativa de pessoas cristãs em aceitar as diferentes tradições de fé que estão presentes no contexto brasileiro. Compreendê-las não como ameaça, mas como expressões do amor de Deus seria um testemunho concreto de amor ao próximo.
O segundo desafio é afirmar claramente que o Evangelho e a violência são incompatíveis. Não há como professar a fé em Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, destruir o sagrado do outro. Da mesma forma, não é possível negar, em nome de Deus e da fé em Jesus Cristo, o direito à existência do outro por causa da sua orientação sexual ou tradição religiosa.
O terceiro desafio, fortalecer as alianças de solidariedade e de proteção aos sagrados em risco de extinção. Cada tradição religiosa reúne um conjunto de sabedorias que, se não forem cuidadas e preservadas, empobrecem a própria humanidade.
O quarto desafio, repensar o que é igreja. Isso significa não sobrevalorizar as institucionalidades. Elas são importantes, mas não é um fim em si mesmo. O objetivo é sempre o testemunho da fé em Jesus Cristo e a proclamação do Reino. De nada vale ter a instituição se não testemunhamos Jesus e não proclamamos o Reino de justiça e misericórdia (Mt 25.34-26; Lc 1.46-56; Lc 6.36-46). Nesse sentido, não perder a perspectiva do projeto originário de Jesus é um exercício permanente a ser feito.
O quinto desafio, liberdade teológica para atualizar o testemunho cristão. A fé em Jesus Cristo é dinâmica. Ela não congela no tempo. Sua mensagem se atualiza. Por isso, é necessário que o fazer teológico não esteja condicionado a doutrinas, dogmas e poderes institucionais.
Finalmente, o permanente desafio da igualdade na diversidade e da abertura das fronteiras. O século XXI apresenta paradoxo no fim de todas as fronteiras e, ao mesmo tempo, do desejo de se erigir novos muros para separar e confinar os que fogem de guerras e da falta de perspectiva.
Uma inspiração para o testemunho cristão em um mundo plural pode ser o exemplo da comunidade de Gálatas, que se deparou com os conflitos que se originam do encontro entre diferentes culturas e nos deixou como herança a o legado abaixo:
“De fato, vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos vós que fostes batizados em Cristo vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, pois vós sois um só em Cristo Jesus. (Gl 3.28)
É esta orientação que precisa valer hoje também para cristãos e cristãs de qualquer lugar do mundo.
Bibliografia
CUNHA, Christina Vital da. Oração de Traficante. Uma etnografia. 1. Ed. Rio de Janeiro: Graramond Universitária, 2015
FERREIRA, José Antônio. Gálatas. A epístola da abertura de fronteiras. São Paulo: Ed. Loyola, 2005;
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras 26.ed., 1995.
KOPENAWA, Davi; BRUCE, Albert. A Queda do Céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017.
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING; Heloisa M. Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Livro Eletrônico.
TUKANO, Álvaro. O Mundo Tukano antes dos brancos. Um mestre Tukano, vol. I. Brasília:INCTI/UNB/CNPQ, 2017.
QUINHENTOS ANOS DE REFORMA
O FOSSO SOCIAL
O povo brasileiro está dividido. Um largo fosso social, secular e cruel, divide nossas cidades em centro e periferia; divide as pessoas em “famílias de bem” “e maus elementos”, conforme o jargão policial; divide o povo em brasileiros a quem tudo é concedido e brasileiros a quem tudo é tirado; em funcionários bem pagos que trabalham pouco e pessoas desempregadas, muitas vezes chamadas de vagabundas, porque não encontram emprego que mereça esse nome; em meninos soterrados de presentes e meninos que não têm nenhum brinquedo; em mulheres que fazem compras de supérfluos em Miami e mulheres que buscam sua comida nos lixões; em meninas que ostentam seus vestidos de grife e meninas que precisam prostituir-se para viver; em centro e periferia, em moradias confortáveis e favelas sem conforto; em “bairros nobres” e vilarejos de casebres feitos com trapos e farrapos. Há uma classe dirigente, com nomes que vem desde os tempos do Império, uma elite sempre infiel ao povo (Darci Ribeiro), de mentalidade ainda escravagista, extremamente hábil para manter-se no poder, através da manipulação de eleitores e eleitoras e através de golpes; uma elite dirigente que perpetua a divisão e renova o fosso, se necessário com golpes e enganações), em todos os momentos nodais da história brasileira. Conforme pesquisa recente de um grupo de cientistas franceses, houve ligeira diminuição do fosso social brasileiro durante os primeiros anos do século 21, mas essa melhora foi seguida de uma queda de 19 pontos (na escala adotada pelo grupo), nos dois primeiros anos depois do impedimento da presidente Dilma; uma queda que jogou o Brasil novamente para uma das 10 mais injustas sociedades entre todos os países. E os nossos centros urbanos preferem apartar-se das periferias, com cercas eletrificadas, com muros altos, com cães ferozes, com guardas particulares e com sete chaves, a exemplo do “apartheid” racial da África do Sul que tanto criticávamos; o centro prefere apartar-se da periferia a repartir privilégios historicamente arraigados; prefere agarrar-se aos privilégios a usufruir da paz social.
Não podemos celebrar os 500 Anos da Reforma, se ignoramos essa realidade; não podemos celebrar nada quando fazemos de conta como se esse fosso social não existisse, porque ignorá-lo significa concordar com ele, significa ser cúmplice, significa perpetuá-lo. Não, não existe neutralidade. Não existe celebração neutra. Quem pretende ser neutro já definiu sua posição e já optou pela situação existente, pelo “status quo”; quem pretende ser neutro já se decidiu pela permanência do fosso e vai procurar argumentos para justificá-lo. Não existe celebração neutra, porque a celebração sempre será feita sob a perspectiva de um dos lados do fosso. Os celebrantes sempre estarão identificados com um dos lados. Por isso, quando celebram como cristãos, seguidores do Nazareno que foi pregado à cruz porque optou pelo lado dos excluídos, precisam perguntar de que lado do fosso se posicionam, sob a perspectiva de quais dos dois lados analisam a realidade brasileira e enaltecem os Reformadores. Por esse motivo, as comunidades e os colegas pastores e padres que celebraram ecumenicamente os 500 Anos da Reforma, em várias cidades, fizeram bem quando tomaram posição diante do escandaloso e vergonhoso fosso social que divide brasileiros e brasileiras desde as caravelas de Cabral; fizeram ainda melhor, quando leram o contexto da celebração com os olhos dos vencidos, dos que foram feitos perdedores; quando analisaram a realidade contextual a partir da perspectiva daquele lado do fosso em que vivem as vítimas de uma organização social cruel; uma organização social que os excluídos não ajudaram a formatar, mas sob a qual eles sofrem.
A FÉ DOS REFORMADORES.
A fé dos Reformadores gira totalmente em torno da JUSTIFICAÇÃO POR GRAÇA – “sola gratia”. Eles proclamam que Deus DECLARA-NOS justos por soberana gratuidade e por amor. Não somos justos, mas Deus nos atribui a dignidade de sermos justos. Cabe a nós nada mais do que acolher essa graça com a nossa fé somente – “sola fide”. Qualquer tentativa nossa de produzir obras de merecimento, através de nossas realizações e conquistas, é falta de fé, é falta de confiança na graça de Deus e, portanto, afastamento de Deus, pecado. Esse é, na verdade, o pecado original na visão dos Reformadores: A falta de confiança na graça de Deus. Porque a falta de confiança nos leva a querer produzir méritos próprios para nossa justificação. Méritos, com os quais queremos distinguir-nos daquelas pessoas que julgamos não terem méritos. Portanto, para os Reformadores a “meritocracia” neoliberal é pecado.
Podemos substituir a palavra “justificação” pela palavra “aceitação”. Somos dignos de aceitação porque Deus nos atribui essa dignidade, não porque a conquistamos através da nossa origem, da nossa aparência, da nossa posição social, ou através de qualquer outra realização que nos rendesse méritos; Deus nos ATRIBUI a dignidade de sermos aceitos. Basta aceitá-la em fé. Podemos comparar essa aceitação com a maneira como os pais aceitam a vinda de uma criança. Esperam-na com amor, preparam tudo para acolhê-la bem, alegram-se e recebem-na sem perguntar o que ela realizou para ser aceita com amor. A dignidade para ser acolhida reside no amor dos pais. É o amor dos pais que confere dignidade à criança para ser aceita. A dignidade não reside nas realizações da criança que, afinal, ainda nada realizou. A dignidade das pessoas que nos cercam, e também das pessoas do outro lado do fosso social, não depende das suas realizações, dos seus méritos, mas é atribuída a elas por graça. E essa dignidade é inviolável, como ensina o Evangelho, e como lemos no cabeçalho da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A LIBERDADE CRISTÃ.
A mensagem que anuncia aceitação por graça e fé é notícia libertadora. Ela nos diz que somos aceitos sem a necessidade de realizar qualquer feito para merecer essa aceitação. LIBERDADE! Já não precisamos nos estressar em busca de merecimentos; já não precisamos correr, incessantemente, atrás de medalhas e louros, porque já estamos aceitos. Somos livres. Fomos libertados de nós mesmos, do nosso medo de não sermos dignos de aceitação, de não termos realizado o suficiente, de não sermos suficientemente bons. A graça que acolhemos somente com fé – “sola fide” – liberta-nos de nós mesmos para que possamos voltar-nos aos nossos semelhantes. Desocupados da incessante busca de méritos, desocupados de nós mesmos, temos as duas mãos livres para os nossos semelhantes. Então, a graça de Deus poderá agir em nós como energia divina, no sentido de conferirmos aceitação também aos nossos semelhantes, sejam eles quem forem, sejam quais forem suas limitações, seja qual for sua origem étnica, seja qual for seu tropeço, seja qual for sua situação social. Não sou eu mesmo, então, quem age, quando acolho meu semelhante. É a graça de Deus – o saber-me aceito incondicionalmente – que age em mim. Por outro lado, quando não acolho a graça e aposto nos meus méritos, continuarei correndo atrás deles, e quanto mais acumular méritos, tanto melhor me considerarei (gente do bem). Farei comparações e me considerarei melhor que os meus semelhantes, que desprezarei como menos dignos (ou até matáveis, metralháveis). Julgarei os outros indignos para os direitos que pretensamente cabem a mim, porque os vejo como menos qualificados para os privilégios que eu gozo. Desprezo-os, seja porque tenho um bom emprego e eles não; porque tenho uma caderneta de poupança gorda e eles nem conta tem; porque posso encher até em cima o carrinho do supermercado e consumir mais do que eles; porque sou branco e ele indígena; porque sou homem e ela mulher; porque sou heteroafetivo e ele homoafetivo; porque sou descendente de imigrantes e ele descendente de escravos; seja porque eu tive sucesso e ele fez bancarrota. Quem constrói sua vida sobre os pilares do mérito costuma odiar os pobres, porque considera-os sem méritos, vagabundos. No entanto, todos estamos em nível igual “coram deo”, isto é, aos olhos de Deus, porque “todos pecaram e carecem da graça de Deus – Romanos 3,21-26. Portanto, a fé que confia na graça liberta as pessoas da necessidade de girarem em torno de si e capacita-as, assim, para que possam perceber seu semelhante na situação dele. Liberta-as e, ao mesmo tempo, sujeita-as, como escreveu o Reformador: “Um cristão é um livre senhor sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém” (acrescento: Não estou sujeito nem ao príncipe, nem às tradições, nem aos tabus, nem à moral local, nem ao bispo, nem ao delegado de polícia, nem ao quebra molas, nem à fila de espera, nem ao professor, nem ao “bicho papão, já que minha aceitação não depende deles). Por outro lado, “um cristão é um servidor de todas as coisas e está sujeito a todos, por amor”. Foi libertado pela fé, mas está sujeitado pelo amor, porque vive em sociedade e, por isso, respeita as leis e as autoridades (inclusive o bispo, o quebra molas e a fila de espera), e vai contribuir para o bem da sociedade com todo seu empenho, não mais por obrigação e por causa da lei, não mais por causa da pressão de fora para dentro ou por causa da meritocracia, mas pela vontade espontânea e livre que nasce de dentro para fora. Libertado e livre na fé, sujeita-se no amor. O amor não como produção própria, mas como fruto da graça que age dentro dele.
O PECADO
Para o Reformador Martim Lutero, o maior pecado de todos é querer conquistar aceitação através de méritos, de louros, de realizações, como fez o filho mais velho da conhecida parábola. Uma parábola que fala do pai bondoso e dos seus dois filhos perdidos, e que também é conhecida como “Parábola do Filho Pródigo”, que encontramos em Lucas 15. O filho mais novo, que foi para a cidade, se deu mal e foi parar entre os porcos (deu-se mal como milhões de brasileiros e brasileiras se dão mal, porque migram despreparados para a cidade; porque foram expulsos do campo; porque eram peões de estância, agregados, meeiros, parceiros, posseiros que sobraram quando, a partir de 1964, a terra foi mais uma vez concentrada em vez de ser reoartida. O filho mais novo que se deu mal na cidade, quando volta (talvez como um “sem terra” assentado), é recebido com festa pelo pai. O filho mais velho, no entanto, argumenta com seus méritos, considera-se mais merecedor que seu irmão, não o aceita e distancia-se dele. Ao se distanciar dele, distancia-se do pai (não volta ao pai, do qual sempre esteve geograficamente próximo, mas emocionalmente distante). O filho que continua perdido, portanto, é o irmão mais velho, e a parábola não revela se ele volta ou não. Talvez volte para abraçar o pai e o irmão, mas talvez acabe contratando um jagunço para metralhar o irmão mais novo.
Ouvimos, pois, essa conhecida parábola como alerta, quando corremos atrás de louros e acumulamos méritos; quando nossos pretensos méritos nos fazem cair na tentação de pensar que somos mais merecedores que nossos irmãos; quando caímos na tentação de apontar para a falta de méritos dos nossos semelhantes.
AS DUAS ASAS
Disse o Reformador Lutero que “toda a vida cristã consiste de dois polos: a FÉ que acolhe o amor de Deus e a PRÁTICA que leva esse amor aos semelhantes”. Podemos comparar essa realidade cristã com uma borboleta e seu par de belas asas. Com uma asa somente, a borboleta não consegue levantar voo e nem visitar as flores. Com uma asa somente, também a fé cristã é incompleta e não consegue “levantar voo”.
Devemos ainda acrescentar: Quando o amor – que é a prática da fé – atua na organização da convivência humana (ou seja, na política) ele muda de nome e passa a chamar-se JUSTIÇA SOCIAL. A justiça social é o amor ao próximo que atua na organização da convivência humana, na política. A justiça social que está tão ausente na realidade brasileira, apesar de toda religiosidade, apesar de tantos améns e aleluias, apesar de darmos os nomes de inúmeros santos a prédios, ruas, parques e até a linguiças e manteigas. O amor que muda de nome para justiça social e que pode, com uma única lei, beneficiar milhões de pessoas, assim como sua ausência (injustiça social) poderá arruinar a vida de milhões de pessoas. Por que será que os cristãos e as cristãs não conseguem convencer os políticos brasileiros a darem um significado melhor à sua prática política? Com certeza, porque, muitas vezes, falta à religiosidade de brasileiros e brasileiras uma das asas, a segunda asa, a asa da prática do amor; a prática do amor que quer avançar para além do relacionamento individual, da solidariedade em dias de catástrofe, do assistencialismo dos clubes de serviço; que quer avançar até a área da organização da convivência humana, até a área das decisões políticas, até a área que tem a ver com a atividade sadia da política; a asa da vida cristã que se chama ética social, que se chama justiça social e que vai ter projetos de inclusão social e não projetos de armas que excluem os fracos em favor dos fortes, das pessoas que a si mesmas se atribuem a qualificação de “pessoas do bem.” Não foi à toa que o Reformador Lutero escreveu mais de uma vez aos príncipes para dizer-lhes que servissem seus súditos e não se servissem a si mesmos.
EDUCAÇÃO
Os Reformadores exigiam que ao lado de cada igreja fosse construída uma escola, até que TODAS as crianças de todas as famílias estivessem matriculadas. O Reformador Johannes Brenz, que atuou na cidade de Schwäbisch Hall, quando assumiu os trabalhos, em 1521, ordenou: “Nenhum centavo seja gasto em catedrais e santuários antes que todas as crianças de todas as famílias frequentem as escolas”. Não por acaso, aquela região apresenta, há muitos anos, uma qualidade de vida que conta entre as mais elevadas do mundo. Nos mesmos anos que Johannes Brenz promoveu a construção de escolas, o Brasil iniciava uma economia baseada na escravatura, que durou quase 400 anos. Durante esse longo tempo, somente um ou outro filho (somente rapazes) da Casa Grande era enviado para estudar em Lisboa, Coimbra, Paris. De lá voltava “doutor” (doutor, no mais das vezes, em vida noturna), o que lhe dava créditos de assumir bons empregos públicos para servir a si e seus pares; para elaborar privilégios e penduricalhos que, até os nossos dias, pagamos como “direitos adquiridos”; para realizar as “façanhas que nos sirvam de modelo” e que exaurem os orçamentos públicos, como acontece no Estado do Rio Grande do Sul.
O TRABALHO
Até os dias dos Reformadores, entendia-se que as pessoas podiam servir a Deus somente como clérigos (padres, bispos, freiras, monges) Por isso, o jovem estudante Lutero, quando se assustou com um raio que caiu perto dele, apavorado prometeu: “Ajuda-me Santa Ana, e vou ser monge” (ajuda-me e vou servir a Deus, vou ser uma pessoa boa, vou reunir méritos para merecer aceitação, vou entrar no convento). Mais tarde, ele diria: Cada trabalhador serve a Deus quando faz seu trabalho profissional com dedicação e responsabilidade, porque servirá seu semelhante: O mecânico que faz um bom serviço para evitar acidentes; a professora que educa a criança; o agricultor que produz alimentos; a mulher agricultora, até mesmo quando limpa o estábulo, depois da ordenha de suas vacas; ou a menina que balança o berço para ninar seu irmãozinho. Esses ensinamentos dos Reformadores criaram um conceito novo do trabalho e valorizaram-no sobremaneira. O trabalho passou a ser visto como serviço prestado a Deus, uma vez que é um serviço prestado ao semelhante; passa a ser visto como uma expressão de fé mais valiosa do que qualquer oferta de sacrifícios e tão valiosa como qualquer ritual religioso. Naqueles mesmos anos, os trabalhadores brasileiros (os poucos que eram livres) iam ao trabalho em fatiota e gravata, acompanhados de escravos que levavam as ferramentas. Assim, eles protegiam-se da “vergonha” de serem reconhecidos como trabalhadores braçais, pois o trabalho braçal era visto como humilhante e apropriado para escravos.
ÉTICA
Todos somos limitados. Todos e todas somos sujeitos ao erro. Em outras palavras: “Todos pecamos e carecemos da graça de Deus” – como escreve o Apóstolo Paulo, na sua Carta aos Romanos, 3.21-26. A humildade de reconhecer nossas limitações e, consequentemente, a disposição de depender da graça, essa humildade é o centro da ética dos reformadores. Ela nos diz que todas as pessoas estão no mesmo nível diante de Deus e que elas têm a mesma dignidade (porque se trata de dignidade atribuída e não conquistada); essa humildade de saber-se dependente da graça, assim ensinam os Reformadores, nos diz que nossos semelhantes têm os mesmos direitos que nós, por dependerem também da graça (por serem também limitados, a exemplo dos paralíticos, dos lunáticos, dos endemoninhados, das pessoas acometidas de toda sorte de enfermidades, que Jesus visitou, por primeiro, quando iniciou seus trabalhos na Palestina (Mateus 4. 23-25) – dos fracassados, dos derrotados, dos perdedores, dos desempregados, do Zaqueu que precisou aprender a ser honesto (Lucas 19), das marias madalenas com seus sete demônios (Lucas 8.2). Todas essas pessoas estão no mesmo nível. Todas são iguais em dignidade, porque sua dignidade é atribuída, não conquistada e, quando essa dignidade está soterrada de lama, por causa de erros próprios ou por causa de erros cometidos por outros, cabe-nos desenterrar a dignidade encoberta. Por serem todas iguais em dignidade, as pessoas já não estão divididas, em méritos para aceitação, “nem em gregos e judeus, nem em homens e mulheres, nem em libertos e escravos, uma vez que todos somos um em Cristo Jesus (Gálatas 3.28). E eu acrescento: Já não deveríamos estar divididos, por um lado, em magistrados que merecem gorda Bolsa Moradia em cima dos seus gordos salários, além de aposentadorias múltiplas, com mil penduricalhos e, por outro lado, em mães que foram feitas pobres e são odiadas por causa de uma mísera Bolsa Família.
CORRUPÇÃO – HONESTIDADE
Na primeira das famosas Noventa e Cinco Teses, o Reformador Lutero escreve: “Ao dizer ´Fazei Penitência` nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência”. Portanto, o arrependimento e a penitência são uma espécie de consulta que fazemos a nós mesmos; são uma autoavaliação, sempre renovada; são uma olhada no espelho, à luz da vontade de Deus, que desperta em nós a honestidade de dentro para fora; uma honestidade que é uma postura de vida, muito mais profunda do que um gesto externo; muito mais autêntico do que uma coação da lei que vem de fora para dentro e que alguém cumpre apenas por obrigação e por medo de ser flagrado. Honestidade nascida de arrependimento e penitência é postura de vida, é jeito de ser, brotado de dentro para fora; é conversão e, se necessário, mudança, meia volta, correção de rumo. Na explicação do Sétimo Mandamento – NÃO FURTARÁS – o Reformador explica: “Devemos temer e amar a Deus e, portanto, não tirar os bens do nosso próximo nem nos apoderar deles por meio de mercadorias falsificadas ou negócios fraudulentos (ou pelo modelo neoliberal, acrescento eu), mas devemos ajudá-lo e conservar e melhorar seu meio de vida”
Como podemos ver, a Teologia dos Reformadores, sua fé e sua ética, seus conselhos e ensinamentos são de grande atualidade e podem servir-nos de orientação, seja em nossa vida particular, seja em nossas atividades que beneficiam a coletividade.
Silvio Meincke – outubro de 2017.
Semente de Esperança
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A RIQUEZA ESTÁ NA DIVERSIDADE
Olho para a mata e vejo seu verde. Chego mais perto, olho novamente, e observo as muitas tonalidades do verde: Vejo a variedade entre o verde que é quase amarelo e o verde que é quase azul. Dou alguns passos e entro na mata. Constato que cada espécie de árvore tem folhas diferentes da outra espécie. Depois, caminho pela mata e descubro que a diversidade de folhas, flores e frutas atrai uma variedade infinita de espécies da fauna e da flora. Fossem todas as árvores iguais, de uma só espécie, e haveria menos vida. Concluo que a diversidade é rica e a uniformidade é pobre.
Médicos e nutricionistas ensinam que nossos pratos são tanto mais saudáveis quanto mais coloridos, porque cada alimento tem seu valor nutritivo próprio. Se nossos alimentos fossem sempre brancos ou sempre marrons, nosso corpo não encontraria a diversidade que necessita para alimentar-se bem. Portanto, nossa mesa é rica quando nossos alimentos são diversificados; e nossa mesa é pobre quando nossos alimentos não variam.
Vejo lavouras de uma única espécie de plantas, até onde minha vista alcança. A manipulação genética e os venenos possibilitam esse tipo de plantação uniforme. Essas lavouras não têm as flores que as abelhas procuram; que as borboletas querem visitar. Essas plantações não acolhem libélulas, nem convidam besouros, nem apreciam o canto dos pássaros e, nas entressafras, com o solo exposto, o sol queima todas as formas de vida. Lavouras de monocultura fazem guerra contra a natureza, porque insistem na uniformidade quando a natureza insiste na diversidade; porque a uniformidade destrói a vida, mas a diversidade promove a vida; porque a uniformidade exclui, mas a diversidade inclui.
Admito: O lucro é necessário. Sem lucro, não haverá produção de alimentos suficientes. Admito também que é necessário criar manejos, instrumentos, e recursos técnicos que facilitam o trabalho duro de arar a terra, de plantar a semente e de colher o alimento. Não por último, admito que as plantas indesejadas devem ser combatidas para evitar que sufoquem as culturas de quem planta e precisa colher. Mas cada planta e cada ser vivo tem sua função no equilíbrio da natureza, e cada espécie tem seu lugar na cadeia de interdependência das múltiplas formas de vida. Por isso, cada espécie eliminada com venenos deixará uma lacuna e fará falta. Além disso, os grandes lucros usufruídos por poucos donos de monoculturas gigantescas não enriquecem a totalidade do povo; e os silos cheios de poucos proprietários não alimentam os estômagos vazios dos muitos famintos: Quando os lucros decidem o que se produz (trigo, soja, milho, carne, algodão, etanol, eucalipto); quando o mercado decide sobre os lucros (o que rende mais no momento); quando os lucros decidem sobre o destino da colheita (exportação ou a mesa das famílias brasileiras).
De tempos em tempos surgem governantes que enaltecem a uniformidade de pessoas e de raças, de culturas e de confissões religiosas, de expressões artísticas e de formas de afeto: Combatem a diversidade, excluem os diferentes, desprezam as minorias, rejeitam o diálogo entre formas de vida e de opiniões diferentes. Hitler queria uma raça ariana pura. Getúlio, durante o Estado Novo, mandava prender quem falasse uma língua que não fosse o português. Nas décadas de 1960/70 permitia-se uma verdade só e somente um passo certo. Mas a vida do povo brasileiro é colorida. Ela é indígena e negra; é luso-brasileira e mestiça, é ítalo brasileira e teuto brasileira com todas as demais variações; é feminina e masculina; é heteroafetiva e homoafetiva. A vida foge da uniformidade porque é mais ampla, mais bela, mais livre, mais variada e mais colorida. As pessoas são diferentes umas das outras, mas elas são todas iguais em seus direitos e seus deveres, e cada uma tem o direito às condições que necessita para desenvolver plenamente sua personalidade e seu potencial. É a diversidade de um povo que constitui sua riqueza, desde que haja projetos de integração que evitam a exclusão. Mais cedo ou mais tarde, a torrente indomável da diversidade romperá as represas da uniformização, porque o colorido enriquece, mas a uniformidade empobrece. E os limites são a Constituição Federal, o Código Penal e o Estado de Direito, jamais o arbítrio deste ou daquele governante.
Silvio Meincke.