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Cartas Pastorais

Justiça: clamor do povo de Deus na Bíblia e nos dias atuais

Prédica feita pela PPL EST no Encontro Nacional 2017 da PPL.

Que a Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Amor de Deus, Pai e Mãe, e a Comunhão do Espírito Santo seja com todos e todas vocês. Amém!

Prezada Pastoral Popular Luterana dos quatro cantos do Brasil,

Este é o mês da Pátria, mas talvez haja muito pouco a se comemorar.

O talvez maior crime ambiental do Brasil, o assassinato de um rio, por conta de um sistema que não prioriza segurança e responsabilidade, mas sim o lucro, passará em branco. Ao mesmo tempo, a Amazônia será leiloada para a extração de seu minério, sob todas as consequências ambientais disso decorrentes, construção de barragens e o apodrecimento da floresta sob as águas enclausuradas, o desmatamento para o plantio de soja e a criação de gado, um gado muito espaçoso, para o churrasco, um pouco dele nos nossos domingos, a maioria para a China e Rússia. Na lógica atual do Brasil, um boi vale mais que uma árvore e o ecossistema que ela sustenta. Se tratando de povos indígenas ou povos tradicionais da floresta, então nem se fala, um boi vale mais que uma aldeia inteira.

Os direitos trabalhistas e a previdência também é leiloada e com ela toda qualidade de vida e a chance de futuro do brasileiro e da brasileira, no mesmo momento que dívidas bilionárias, trilionárias são perdoadas de empresas sonegadoras.

Salários de professores e professoras são pagos às migalhas e bolsas são cortadas sem dó nem piedade, em um país que se prioriza promotores e juízes a cientistas e intelectuais; prioridade essa que nem ao mesmo se reverte em mais justiça, pois temos um sistema judiciário lento e de uma lei tão morta como a que Jesus e Paulo criticavam: há casuísmo demais, lei para tudo, para condenar e para absolver – depende a cara do freguês.

O que temos, então, para comemorar neste mês da Pátria? Sim, o que temos para comemorar?

O festival de injustiça dos últimos tempos é digno de uma tragédia grega. Deputados e senadores assumem a tarefa de juízes, mas o fazem sob clara e evidente perspectiva política, não julgando fatos, crimes, provas, mas governabilidade, ou seja, aliança política. Mesmo juízes profissionais se deixam levar pela maré política do Brasil, onde todo fato, toda verdade, todo princípio absoluto de direito, da constituição, da ética, se esvai no subjetivismo da “lei para os inimigos, não para os amigos”. Subjetivismo esse, aliás, que está presente em todos os ambientes do Brasil, seja na macropolítica, seja mesmo em nossas comunidades e instituições: o amigo não se julga, e quando se julga, o é com muita misericórdia; mas o inimigo, a este ergue a clava forte. Se o amigo não se julga, o parente recebe toda proteção jurídica possível. Quanto ao negro, o pobre, o índio, o travesti, quem poderá defender?

Proponho uma nova analogia teológica. Quando quisermos entender o binômio Lei e Evangelho, expliquemos assim: Lei é aquilo que vale para pretos, pobres e putas; Evangelho o que vale para amigos e parentes. Não preciso dizer que esta analogia apontará para a catástrofe teológica que vivemos atualmente e que tende a se estender, tendo em vista a apatia generalizada, inclusive em espaços e indivíduos que deveriam estar entre os mais indignados. Como falar em justiça divina no nosso contexto? Como dizer “outros 500” sem uma profunda inocência ou hipocrisia?

Certamente um conceito que a teologia como um todo, mas especialmente a teologia da libertação terá que aprender a falar e a ressignificar é o conceito de justiça. Seria justiça divina o aparato de poder, aparato punitivo, de manutenção do status quo, ferramenta dos poderosos sobre os fracos, assim como é a justiça humana? Nesse caso, Deus seria como um ídolo que esmaga seus devotos, um ídolo diante do qual levamos nossos sacrifícios para serem imolados, sangrados e queimados. Seria a justiça divina o instrumento de vigilância contínua, espionagem, perseguição, e exposição pública das fraquezas mais íntimas? Bom, esse Deus agrada muito aos moralistas; agrada tê-lo de olhos sobre os outros enquanto desvia os olhos de nós mesmos. Seria, então, a justiça divina um monumento pesado, das toneladas de papeis imóveis, dos casuísmos farisaicos e burocráticos da linguagem forense dos dogmatas mais fervorosos? Não foge muito à realidade também. Vocês devem ter percebido que estas três concepções de justiça divina são as mais em voga na teologia, o que não é nenhuma surpresa quando nos atentamos para o contexto em que nós vivemos: estão completamente encarnadas na vida real.

Mas diferente dos dias de hoje em que a justiça é a invocação dos poderosos que fazem uso dela como arma “civilizada” de domínio e força para conseguirem o que querem, a justiça da Bíblia, particularmente nos Profetas e nos Salmos, é a invocação do injustiçado, do perseguido, do atormentado. E diferente dos dias de hoje em que o juiz é o representante das classes dominantes, o juiz da Bíblia é o Javé do deserto e das montanhas, que desce e peleja por seu povo.

Justiça na Bíblia é diferente da justiça corriqueira de nossos dias, justiça é sinônimo de vingança, ou vice-versa. A dificuldade da teologia em lidar com o clamor por vingança dos profetas, do salmista, dos mártires em apocalipse é a dificuldade do teólogo de gabinete em sentir na própria pele a perseguição que o povo pobre do Antigo e do Novo Testamento sofreu, é a dificuldade em compreender na própria carne as injustiças diárias que os povos indígenas, quilombolas, os pequenos agricultores, os favelados, os subempregados, as mulheres, os homossexuais são afrontados. Estes e estas, assim como o profeta, clamam: vinga-me, Senhor! Quem não vive na pele, quem não sente na alma, não pode entender o conceito de justiça e vingança na Bíblia.

Quando se trata de justiça divina, não são teólogos ou teólogas que têm a ensinar ao povo, mas o movimento é o oposto: nós que temos que aprender com o povo pobre de Deus que diariamente sofre a afronta dos poderosos, o povo que sofre a afronta de quem usurpa a qualidade de fazer justiça de Deus, o povo que permanece fiel à justiça que Javé promete e realiza. Quem usurpa o poder da justiça para fazer injustiça, coloca-se no lugar de Deus. Amar a Deus, portanto, é não se submeter a esta usurpação, não se sujeitar à injustiça, não se deixar ser cooptado pela injustiça, mas levantar-se contra os usurpadores, ter os olhos fitos em Deus e sua justiça, e clamar tão somente por ela, pois só ela lhe pode fazer justiça.

Quem clama por justiça não pode ser instrumento de injustiça, por isso os mandamentos iniciam com a memória do Êxodo. A vingança clamada não é a inversão da injustiça, como se tem medo, mas é a restauração da justiça, é a correção da injustiça; não é veículo de ódio, mas contra o ódio. O clamor pela justiça é o clamor daquele e daquele que não entra no jogo de força e injustiça. É o clamor daquele e daquele que não quer usar das ferramentas disponíveis no jogo, mas apela que Deus rompa o jogo. O clamor pela justiça e pela vingança de Deus é o clamor de indignação, ou seja, da ira que não é ferramenta do poder, mas ferramenta contra o poder. Este clamor, portanto, é clamor solitário e abandonado, é clamor longe dos centros de poder, dos círculos de influência: é clamor dos excluídos, dos de fora do centro.

Engana-se, então, quem pensa que é clamor de vitoriosos: é clamor de derrotados. Pois essa indignação, revolta, rebeldia, tem tudo pra não levar a lugar nenhum. Ela é a indignação de quem já perdeu o jogo e não de quem pode jogar. Ela é cruz! O derrotado e a derrotada, que é derrotado e derrotada por se negar a fazer o mesmo jogo de injustiça, de corrupção, de suborno, clama a Deus: Até quando, Senhor? Faze-me justiça, Senhor!

A este clamor, Deus responde com seu Evangelho: Volta-te a mim. Fite os olhos em mim. Espera somente em mim. Aparta-te do vil. E então serás como a minha boca. Será como a minha boca para anúncio de Evangelho, anúncio de justiça num mundo de injustiça, anúncio de amor num mundo de ódio, anúncio de paz num mundo de violência, anúncio de esperança num mundo de angústia, tormento e perseguição. A justiça de Deus não é ofertada como indenização particular, mas sempre como serviço e como missão. Deus não me faz justiça para meu gozo individual, mas sempre faz justiça como inauguração de novas relações com o próximo e consigo. Justiça de Deus é dádiva a ser compartilhada. Deus não julga separadamente, pela cara do freguês. Todo juízo de Deus é epifania de seu Reino e seu reinado.

De fato, esta fé e esperança não leva a lugar nenhum. Mas o lugar nenhum para qual o profetismo leva é assumido como lugar de esperança: o não-lugar, utopia. É a negação de todos os lugares de fronteiras e limites delimitados, de posse alegada, escriturados. A esperança não se agarra a algum lugar, mas ao não-lugar. Nós somos colocados como muros de bronze deste não-lugar que não possui fronteiras, pois nós somos suas fronteiras, pois vivemos de esperança, nós que vivemos ambiguamente entre o tormento e a justiça, entre o pecado e a graça, entre a cruz e a ressurreição: transição, fronteira, muro, ponte, porta, caminho, boca que se fecha e que se abre.

Faze-me justiça, Senhor! E a justiça que Deus nos faz é contra todo senso de justiça própria, toda autojustificação, toda alegação próprio de justiça, santidade, ortodoxia, ortopraxia. É justiça que ensina humildade, é justiça que ensina gratuidade. Podíamos modificar levemente o hino nacional para ele caber nessa nova noção de justiça que Deus faz irromper entre nós: O penhor da igualdade é conquistado com mais que braços fortes, com abraços fortes, com abraços que compartilham a dor e o gozo, o tormento e a esperança, a angústia e a coragem. Que Deus nos coloque como muros de bronze que sustentam a partilha e abriga a Igreja militante que suporta os tormentos da injustiça, muros pichados com o testemunho de nossa indignação.

Que a graça de Deus nos inspire a novas relações de dignificação da vida, respeito à diversidade e acolhimento das dificuldades, para que os clamores por justiça e livramento possam dar lugar a cânticos de esperança. Que o lugar nenhum que nossa luta leva continue muito forte e vívido em nossos sonhos, que sejam semeados fartamente amor e esperança. E que a paz de Deus que excede todo nosso entendimento nos livre e nos guarde, agora e sempre. Amém!

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