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Cartas Pastorais

MANIFESTO PELA VIDA – PPL

Carta Pastoral 06/2020 em tempos de Covid-19

Ai dos que ao mal chamam bem; que fazem da escuridão luz,
e da luz escuridão; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!
Ai dos que são sábios a seus próprios olhos e prudentes em seu próprio conceito!
Ai dos que são heróis para beber vinho e valentes para misturar bebida forte,
os quais por suborno justificam o perverso e ao justo negam justiça!
Isaías 5.20ss
Amigas e amigos da caminhada,
1. A vida está em perigo no Brasil. A vida das pessoas, dos povos da floresta, dos animais e das plantas, das matas, dos rios, do ar. Vivemos uma crise socioambiental sem precedentes no Brasil e que – na verdade – atinge toda a Casa Comum, a Pachamama dos povos andinos, a Terra sem males dos povos Guarani. É o planeta que hoje sofre as consequências das políticas genocidas do sistema que domina o mundo. Estas políticas são sustentadas pelo sistema econômico, que está nas mãos de menos de 1% de pessoas, os super ricos, e é defendido por quem está no poder político em nossos países. O governo do capitão-presidente é um serviçal deste sistema que mata e destrói. Como afirmou o Manifesto da IECLB de março de 2019: A Economia deve garantir a produção e distribuição justa dos meios de conservação e preservação da vida. […] (Mas) a cada ano aumenta o fosso que separa a parcela mais rica e a parcela mais pobre da população. Um grupo seleto de pessoas bilionárias concentra a maior parte da riqueza nacional e global.
2. Por isso é hora de ouvirmos as palavras muito atuais do Profeta Oséias: […] o Senhor tem uma contenda com os habitantes da terra; porque nela não há verdade, nem amor, nem conhecimento de Deus. O que prevalece é jurar falsamente, mentir, matar, furtar, e adulterar, e roubos e homicídios sobre homicídios. Por isso, a terra está de luto, e toda pessoa que mora nela desfalece, com os animais do campo e com as aves do céu; e até os peixes do mar perecem (Oséias 4:1-3).
3. Trata-se de uma crise ética e da própria civilização humana. No Brasil, a crise põe em risco a vida de milhões de irmãos e irmãs e o próprio sentido de nação. O Brasil está vendendo sua soberania de uma forma vil e criminosa. Que futuro vamos entregar às futuras gerações? Diante de crise tão grave, que podem fazer as comunidades cristãs diante dessas ameaças à Vida? Há muitas respostas. Algumas sensatas, outras ilusórias, outras ainda eivadas de preconceitos. O testemunho bíblico é referência para nós. O desafio que nos está posto é pôr em prática aquilo que a profecia proclama: que

pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus (Miquéias 6.8). Mas, ao identificar as causas da injustiça – que no Brasil atual a pandemia só fez vir à tona com mais evidência – Isaías é ainda mais ousado: Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra (Isaías 5.8).
4. Comunidade cristã não pode conformar-se com este sistema que exclui, invade, explora, destrói a natureza, mata pessoas ao ponto de colocar em risco a vida de todo o país. Comunidade cristã que alicerça sua vida na fé do evangelho de Jesus defende a vida em todos os sentidos: das pessoas, do ambiente, do ar, das águas, das florestas, dos animais, do coração escondido da terra, como proclamam os Yanomami na Amazônia.
5. Como Pastoral Popular Luterana e, com ela, comunidades, grupos organizados de jovens, mulheres com ênfase na luta e defesa de direitos, instituições diaconais como FLD – Fundação Luterana de Diaconia, Comin – Conselho de Missão com e entre Indígenas e Capa – Centro de Apoio e Promoção à Agroecologia, nós nos fazemos presentes em muitos lugares deste imenso e sofrido país, agora enfrentando sua maior crise sanitária, com a disseminação da pandemia do coronavírus que se agrava diariamente com o desgoverno das autoridades federais, e as pressões de empresas que exigem flexibilização da economia sem condições mínimas de segurança para o conjunto da população.
6. Diante da necessidade do isolamento social e dos inúmeros cuidados que se deve tomar para sair às ruas, o desafio é nos fazermos presentes solidariamente junto ao nosso povo, em especial, no cuidado com os setores mais vulneráveis da população. Temos exercitado celebrações alternativas via redes sociais, mas não é suficiente. É urgente dar outros passos, como fazem comunidades que se organizam para fornecer cestas básicas, material de higiene, máscaras e outras necessidades a famílias atingidas pelo desemprego, pelo abandono, pela fome, pelo descaso das autoridades. O auxílio emergencial do governo foi importante, mas só saiu sob pressão e ainda de forma desorganizada, pondo em risco milhares de pessoas nas filas intermináveis da Caixa Econômica Federal.
7. É hora de reinventarmos nossa forma de vida comunitária e recriarmos o sentido da comunhão cristã, do apoio mútuo, da diaconia transformadora, do amor que se manifesta em gestos e partilha de recursos de toda ordem. O evangelho de Jesus ensina o caminho da compaixão, da misericórdia, da partilha e do perdão (Mateus 9.13; Lucas 15). O que isto nos diz hoje em meio à crise? Temos de recuperar a

dimensão profética do anúncio do reinado de Deus feito por Jesus. Ele ensinou claramente: o reino é como uma semente que alguém joga no campo e dessa semente brota uma árvore, muitas árvores e muitos frutos que vão alimentar multidões. Ele afirmou também para quem quiser ouvir: Busquem o reino de Deus e sua justiça, e tudo o mais virá por acréscimo (Mateus 6.33).
8. É hora de praticarmos um dos carismas mais necessários e difíceis no momento: o carisma do discernimento, da ousadia e da ação solidária. A capacidade de discernimento é urgente diante do crescente clima fascista e de ódio que se espalha pela sociedade, infelizmente com o apoio de pessoas que se afirmam gente de fé, batizada, fiel. Mas a ação solidária – que agora mobiliza muitas pessoas em atitudes de emergência, num belo sinal de respeito pela vida e de amor fraterno – vai além disso. É preciso apostar na organização popular, como têm feito as cooperativas e associações da agricultura familiar, que nestes meses já distribuíram mais de 350 toneladas de alimentos saudáveis e gratuitos a milhares de pessoas nas cidades do país.
9. É, pois, urgente que as comunidades, os Sínodos e a Presidência da IECLB proclamem uma palavra forte, orientadora e ousada para encorajar essas ações de solidariedade nas bases da igreja e da sociedade, como fizeram mais de 150 bispos católicos na Carta ao Povo de Deus (25/07/2020). Já temos mais de 3 milhões de pessoas infectadas pelo Coronavírus e mais de 100 mil mortes. Estes são números conhecidos. Mas há muito mais gente que sofre e falece. Por isto, afirmamos que existe um clamor surdo que emerge das sepulturas – silenciosamente – e exige de nós atenção, comunhão e cuidado para com quem está vivo. É extraordinário o que as milhares de equipes de saúde vêm fazendo nos hospitais e centros de saúde por todo o país. Nossa solidariedade para com esses valorosos profissionais. Com elas lembramos as pessoas que trabalham nos serviços essenciais, mercados, farmácias, transportadores, agricultores, servidores públicos de todos os níveis, um enorme contingente de pessoas que, muitas vezes, presta serviço sem a devida proteção. Arriscam suas vidas para salvar vidas.
10. Nesse sentido, cabe um reconhecimento especial às mulheres profissionais de saúde e arrimo de família. São a maioria na linha de frente da saúde, do cuidado com pessoas infectadas em casa, dos idosos, das crianças sem escola, muitas sem emprego ou enfrentado transporte público colocando em risco a família e demais pessoas; outras tantas realizam trabalho remoto duplicando a jornada em casa, e ainda enfrentando a violência doméstica e o feminicídio. Os números oficiais são estarrecedores nesses casos.

11. O Evangelho de Jesus – que anunciamos por palavra e ação – proclama que Jesus é Vida, Luz, Pão, Água Viva, Caminho. Mas o que temos é o pão da morte a bater todo dia em nossas portas. Como anunciar a Vida de Deus num mundo que assiste a tanta morte e em que governos se escondem atrás de falsas justificativas para agir com racionalidade e compaixão por sua gente? É hora, portanto, de conversão, de mudança de pensamento e de sentido de vida, na igreja e na sociedade. E esta começa com um mea culpa que nos faça discernir o momento e a agir com mais coragem, senso de solidariedade para com quem mais sofre, com enlutados, com os mais pobres abandonados à própria sorte. Conversão na mensagem de Jesus e do Novo Testamento é ir além do pensamento, ou seja, mudar de mentalidade, de caráter, de forma de agir. É transformação na maneira de viver. É retomar o caminho noutra direção quando o que fazemos leva ao precipício e à morte.
12. É tempo de silenciar e de somar esforços com quem já arregaçou as mangas e está no campo dos desgraçados para aplacar a força que mata. E esta força não é apenas de um invisível vírus, mas vem de um conjunto de forças econômicas, sociais e políticas que desprezam a vida de nossa gente. Silêncio pela dor e em respeito aos mortos. Mas também o silêncio do medo, quando a própria vida pode estar em risco. Ainda assim, o momento exige também o grito (como no quadro de Edward Much), quando o vírus se materializa em sofrimento, morte, abandono e desprezo pela vida.
13. Como semear esperança diante de um quadro como este? Não é fácil responder, mas como discípulas e discípulos de Jesus, o Crucificado, não podemos esmorecer. Desde a nossa fraqueza e covardia, colocamos nossa confiança no Deus da Vida, no Espírito que renova a face da terra (Salmo 104), que das cinzas redime o nosso ser e nos enche de ânimo, coragem e firmeza para reacender a esperança onde ela se esvai, para erguer quem caiu, para levantar as mãos em atitude de clamor e de louvor. Não sabemos como orar, como Paulo escreveu (Romanos 8.26), mas o Espírito de Cristo intercede por nós e nos encoraja nos caminhos da justiça, da paz e do amor criativo.
Que Deus tenha misericórdia de seu povo e de sua igreja!

Coordenação Nacional da PPL – Pastoral Popular Luterana – Agosto de 2020

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