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Sobre a Esperança

Carlos Rodrigues Brandão

 

 Sobre a Esperança
Mensagem para encerrar 2016 e esperar um “Ano Novo”

Há quem dentre nós talvez diga neste fim-de-ano: “este foi um ano para esquecer”.
Nenhum ano é para ser esquecido. Nenhum mês, nenhuma semana, dia ou minuto.
Recebi – como imagino que toda a gente recebeu – um sem número de mensagens sobre os “tristes acontecimentos de 2016”. Vários deles foram, crítica e corajosamente, bastante justos e necessários. Eu mesmo, em outro tom escrevi um deles. O longo escrito a que dei este nome: Viver sem temer.
Não quero fazer desta mensagem de final de ano (uma velha prática de longos tempos) mais um dos documentos de “análise da atual conjuntura”. Não quero trazer a tanta gente amiga e querida uma mensagem mais de olhar crítico sobre a política e a economia “deles”, junto com o peso de seus efeitos sobre todas e todos nós e, sobretudo, sobre mulheres e homens do povo. Dos muitos povos com quem convivemos de perto ou de mais longe. Lembro sempre nessas horas o que um dia Jean-Paul Sartre escreveu: “Uma coisa é o que fizeram de nós. Outra coisa é o que nós fazemos do que fizeram de nós”. Esta não é, portanto, uma mensagem de crítica a respeito “deles”. É uma mensagem de realista esperança em e sobre “nós mesmos”. Venho de lugares, venho de rostos, venho de gestos e de pessoas ao longo de 2016. E é a lembrança deles e delas o que me leva a escrever esta mensagem.
Venho de uma Escola Popular em um Assentamento do MST no Sul da Bahia. Venho de professoras de escolas dos “sem-terrinha”, e venho de famílias que no assentamento vizinho haviam acabado de receber os seus “lotes de terra”, e entre o temor e a esperança transportavam para eles os seus poucos trastes. Todos eles juntos, e mais os lotes de muitas terras conquistadas pelos camponeses do Brasil afora, são bem menores do que um único latifúndio das empresas do agronegócio. As mesmas que sobre as terras férteis do Sul da Bahia semeiam desertos de eucaliptos. Venho do Norte de Minas. Venho de Montes Claros e de encontros que aproximaram gentes de universidades, como eu, e pessoas de práticas populares. Pessoas de pele escura, entre indígenas e quilombolas, ao lado de homens e mulheres camponesas, povos do cerrado, da floresta e das águas. Pessoas que começam os seus encontros e congressos entre preces e “místicas” com as mãos abertas; e os encerram agitando para o alto, punhos erguidos, e gritando as palavras que deveriam calar os que fizeram do Brasil o que ele tem sido nestes tempos.
Venho de uma gente que em Passo Fundo reúne-se há anos para pensar e praticar coletivamente alternativas de uma “educação para a paz”, quando poderia estar encerrada em seus escritórios, escrevendo outro artigo destinado mais a aumentar um currículo vitae do que a dialogar com quem educa crianças, jovens e adultos no “chão da escola”. Venho de pequenas comunidades tradicionais do Espírito Santo. Ali, onde indígenas Tupiniquins e outros povos resistem como podem a nada menos do que à Aracruz, e a outras poderosas empresas do agronegócio. Lugar onde professoras da Universidade Federal e de Centros e Institutos Tecnológicos (mas profundamente humanos) tentam criar com jovens estudantes vindas “da roça” uma pedagogia da terra a serviço de uma transgressiva educação do campo.
Venho de “fábricas ocupadas” por operários da Argentina, e venho de “Bachileratos Populares” entre Lujan e Neuquén. Lugares de pobres onde, às vezes entre caixotes de madeira e toscas mesas improvisadas. jovens e adultos se reúnem para reaprenderem a ler e a pensarem juntos uma “outra história” do País e do Continente.
Venho de presos políticos. Em Medellín, depois de atravessar três portões trancados a cadeado cheguei na “Penitenciaria del Estado” a um local coletivo onde uma pequena equipe de presos políticos do Exército Popular de Libertação sonha inaugurar uma “Universidade Popular”. Venho de povos andinos que em suas línguas arcaicas nos desafiam a deixar de lado o mercado e viver a vida. E nos sussurram: Sumak Kawsay e os outros nomes que querem todos dizer uma mesma ideia: viver a “vida boa”, um “viver bem” solidário, oposto em tudo à “boa vida” com que o capital e a sua mídia nos mentem entre as mesmas falsas promessas de sempre.
Venho de tanto em um só ano. E bem sei que venho de apenas uma ínfima fração das vivências coletivas, dos momentos populares de insurgência, da persistente reconstrução de grupos de base, e de ações das quantas comunidades tradicionais e também dos movimentos populares. E venho também da presença ativista e solidária de instituições de apoio a alternativas e iniciativas de uma pluri-transgressão emancipadora. Venho de pessoas com quem aprendo a cada dia a calar o que sou, penso e possuo, para descobrir com elas a viver bem mais da esperança do que do medo.
Lembro que no dia 31 de agosto deste ano encerramos o Colóquio Internacional de Povos e Comunidade, em Montes Claros, com uma Passeata dos Mártires. Foi quando escrevi o texto “Viver sem temer”. Caminhamos ao redor de uma grande praça levando pequenos estandartes de mulheres e homens que nos últimos anos, apenas naqueles “sertões do Norte”, haviam sido mortos lutando por terra, território, justiça e liberdade.
Quase ninguém veio presenciar a nossa “caminhada”, e ouvir os nossos cantos e os gritos de nossas memórias. Televisão alguma estava presente e “canal” algum noticiou o que se vivia ali. Mas enquanto pelas janelas abertas das casas víamos de passagem nos aparelhos de TV os acontecimentos do “Congresso Nacional”, entre mãos abertas e punhos erguidos completamos a nossa volta pela praça.
Lembro-me de haver vivido algo semelhante há exatos 50 anos, em plena “ditadura militar”. Estar vivendo algo assim tantos anos depois, de forma alguma me traz um sentimento de “tempo perdido”. Ao contrário, apenas renova a certeza de que “eles passam”. E nós estamos e persistimos em “estar aí”, “de mãos abertas e de punho erguido”, ano após ano, década após década, geração após geração! Estamos aqui! Estamos por toda a parte. E estamos juntas e juntos uma vez mais. E mais do que as “sementes crioulas” que eu vi semana passada sendo jogadas nas terras de assentamentos do Sul da Bahia, creio que estamos unidos para semearmos também a coragem da insurgência de uma justa luta e, mais do que tudo, de uma inapagável esperança.
Saibamos crer em nós. Saibamos acreditar em nossa inabalável vocação de revisitar nossas vidas, de clarear nossas mentes, de não nos deixarmos colonizar, de aproximar os nossos corpos, de unir nossos braços, solidarizar nossas vidas, criar nossos destinose seguir adiante. Confiemos em nós. Saibamos varrer de nossas vidas o temor que o sistema tenta colocar em nossos corações, e saibamos viver do que é nosso: a coragem da esperança.
Baruch de Spinoza foi um pensador do século XVII. Judeu de uma família de origem espanhola expulsa para Portugal e, depois, para a Holanda, viveu lá a sua vida como um humilde “polidor de lentes”, e também a de um filósofo livre. Por causa de suas ideias, inclusive a respeito de deus, ele foi excomungado de sua comunidade judaica. É dele a passagem que, por falar sobre a esperança, eu desejo que encerre esta mensagem.

“Um povo livre se guia pela esperança mais do que pelo medo; o que está submetido se guia mais pelo medo do que pela esperança. Um almeja cultivar a sua vida. O outro, suportar o opressor. Ao primeiro eu chamo livre. Ao segundo, chamo servo” (Baruch de Spinoza, Tratado teológico político).

 

Rosa dos Ventos – no Sul de Minas
Carlos Rodrigues Brandão
Quase no fim do ano. Na quadra da Lua Nova

 

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