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Cartas Pastorais

PRONUNCIAMENTO PÚBLICO DO EX-PRESIDENTE DA IECLB, P. Dr. WALTER ALTMANN, NAS REDES SOCIAIS

FÉ CRISTÃ, IGREJAS E DEMOCRACIA
• A democracia brasileira tem se mostrado nos últimos tempos como
ainda muito frágil. É preciso e urgente que nos empenhemos em
protegê-la e fortalecê-la. Cabe perguntar em que sentido temos,
como pessoas cristãs e como igrejas, responsabilidade nesse esforço
coletivo.
• Segundo o apóstolo Paulo (Romanos 13), a autoridade constituída
tem como finalidade propiciar o bem e coibir o mal. Daí que a
atitude recomendada a pessoas cristãs em relação às autoridades é,
em princípio, a de respeito e, inclusive, a de apoio, por exemplo,
através do pagamento correto de tributos. Isso, contudo, não
significa que as autoridades constituídas sempre cumpram
corretamente com a sua finalidade.
• Ao contrário, no dizer de Lutero, por exemplo, em seu escrito “Da
autoridade secular, até que ponto lhe é devida obediência”, de
1523, um bom governante é “uma ave rara”. Por isso ele fala nesse
escrito sobre os limites da obediência a autoridades constituídas.
Assim, o apoio a autoridades e a regimes políticos nunca será
incondicional, mas sempre crítico. Isso se expressa, em primeiro
lugar, pela tradição consolidada de a comunidade cristã, quando
reunida em culto, interceder pelas autoridades, quaisquer que elas
sejam. Interceder é uma forma de apoio, mas é também uma forma
de crítica, pois ao interceder-se por uma autoridade, está implícito
que ela pode não estar cumprindo a contento com aquilo pelo que
se intercede e de qualquer modo necessita dessa intercessão para
se desincumbir a contento da responsabilidade com que está
incumbida.
• Outra razão para essa postura, em princípio, de solidariedade, mas
sempre de forma crítica, consiste em que a fé cristã tem muito
presente a enorme tentação que reside no exercício do poder. Não
por nada, nas tentações que o próprio Jesus sofreu de parte de
Satanás, se encontra o exercício do poder, poder ilimitado. Propôs
Satanás a Jesus dar a ele “todos os reinos do mundo e a sua glória”,
se Jesus, prostado, o adorasse (Mateus 4.8-9). Jesus resiste,
lembrando que segundo a Escritura, a adoração é devida
exclusivamente a Deus. Ou seja: nenhum poder terreno pode ser
absoluto, mas deverá ser sempre limitado. A pretensão ao poder
irrestrito sempre leva à opressão. A limitação do poder é condição
essencial, para que ele possa ser exercido como serviço para o bem.
• A Escritura também conhece o arbítrio do poder autoritário
e sua opressão mortal. Em Apocalipse 13, o apóstolo
descreve, com detalhes assustadores, a besta, diante da
qual todas as pessoas são compelidas à força a ela se
sujeitarem. São imagens de difícil discernimento quanto a
seu alcance, mas a boa interpretação bíblica detecta aí a
referência ao Império Romano e seu poder que, como
sabemos, chegou a perseguir as comunidades cristãs e até a
levar à morte inúmeras pessoas delas integrantes. Nesse
caso extremo, cabe a quem professa a fé cristã resistir, não
se dobrando, mas, se preciso, sofrendo o martírio.
• Ficam assim descritos os parâmetros principais para o
relacionamento da fé cristã com regimes e autoridades
políticas. Poderíamos também resumir tudo na famosa e
genial afirmação de Jesus de que devemos “dar a César o
que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22.21).
Mas também essa frase de Jesus tem sofrido interpretações
equivocadas de modo bastante generalizado. Entende-se,
então, que Jesus teria estatuído uma separação absoluta
entre Igreja e Estado, entre fé cristã e ação política. O
âmbito político seria autônomo, e a fé cristã não deveria se
envolver com política.
• No entanto, a melhor tradução do dito de Jesus – e
linguisticamente de todo correta – é a seguinte: “Daí a
César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus.
” Mas a
Deus o que é de Deus. Ou seja, Jesus afirma aí Deus estar
“acima de tudo”, só que não como uma fórmula vazia e
demagógica, mas como afirmação da real supremacia de
Deus sobre tudo o mais e, portanto, também sobre regimes
políticos e qualquer detentor de poder terreno. O poder de
César é aí claramente limitado. Devemos entender “daí a
César só o que é de César”. Só o que é de César, de maneira
nenhuma o que pertence a Deus.
•Dito de outra forma: a frase de Jesus de modo algum
serve para sacramentar qualquer ordem política,
mas, ao contrário, dá o parâmetro crítico a partir do
qual as pessoas cristãs e as igrejas têm o
compromisso de se posicionarem em relação a
questões de ordem pública. E aí aquela afirmação do
apóstolo Paulo de que as autoridades estão
constituídas para servir ao bem e coibir o mal se
torna relevante mais uma vez.
• Feitas essas considerações bíblico-teológicas, examinemos
a questão dos regimes políticos. Desde a promulgação da
atual Constituição brasileira, em 5 de outubro de 1988, o
Brasil se propõe a constituir um estado democrático de
direito. Foi algo duramente conquistado pelo povo ao longo
de 21 anos de ditadura militar. É claro que a democracia
não é o único regime político possível. Ao contrário, ela é,
na história, um regime relativamente recente, emergente,
com matizes algo diferentes, sobretudo a partir da
Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).
Seu princípio básico é que “todo poder emana do povo” e
“em seu nome será exercido”.
• Ressalve-se que direitos fundamentais desse ordenamento
ainda tiveram que ser conquistados ao longo do tempo
subsequente, por exemplo, o direito ao voto de mulheres,
negros e indígenas. No início dos Estados Unidos, o direito
ao voto estava reservado apenas aos homens brancos
proprietários de terra. Mas a mudança fundamental estava
estatuída, na medida em que a vontade política passou a
ser exercitada “debaixo para cima”, e não o inverso. Como
proteção, estabeleceu-se o dispositivo de alternância no
exercício do poder, mediante o recurso soberano e regular
do voto cidadão.
• Nada disso havia na época de Jesus, nem nos muitos
séculos subsequentes. A pequena comunidade cristã
emergente após Jesus não tinha qualquer participação na
governança, nem podia ter, pelas circunstâncias peculiares
do mundo em que estava inserida. Cabia-lhe, contudo,
cooperar para o bem das pessoas, interceder pelas
autoridades e, caso necessário, sofrer as consequências das
perseguições que contra ela fossem desatadas. Ainda assim
– ou por isso mesmo –, ela cresceu e paulatinamente foi
ocupando espaços cada vez mais significativos na
sociedade, até que, com a conversão do Imperador
Constantino à fé cristã, no início do século IV, a fé cristã se
tornou a religião oficial do Império Romano.
• Tal aliança obviamente proporcionou à Igreja espaço e
possibilidades impensáveis anteriormente. A Igreja se expandiu
pelo Império, a fé cristã foi levada a outros povos, inclusive,
mais de mil anos após, a outros continentes, também às terras
habitadas por povos indígenas, que experimentaram a sua
subjugação com a chegada concomitante da espada e da cruz.
Fica evidente que todo esse desenvolvimento em nada
contribuiu para preservar a credibilidade que caracterizou a fé
cristã nos primeiros séculos. O que antes era serviço,
intercessão e, eventualmente, sofrimento, passou a ser, em
grande medida, interesses próprios, não poucos privilégios e
dominação de outros povos não-cristãos. Fala-se da era
constantiniana que, de certo modo, se estendeu até a
modernidade e o advento das já citadas revoluções.
• Foi a Reforma protestante no século XVI, liderada por Lutero,
Calvino e outros, que abriu caminho para o advento da democracia
alguns séculos mais à frente. Lutero, por exemplo, se opôs à tutela
das autoridades seculares pela Igreja. As autoridades seculares
estariam legitimamente incumbidas de cuidar da paz e do bem de
seus súditos. Já à Igreja cabia a proclamação da palavra libertadora
de que somos pessoas agraciadas por Deus em Jesus Cristo e
justificadas por fé somente. Foi uma distinção relevante, mas não
uma separação total, como infelizmente ainda hoje muitas pessoas
querem fazer crer. Pois da fiel proclamação da palavra de Deus faz
parte inarredável a tarefa de vigia sobre todos os âmbitos, não
deixando nunca de reivindicar também diante das autoridades
seculares o império da verdade, da justiça e da paz, às quais se
acrescenta o imperioso cuidado da boa criação de Deus.
• Já Calvino foi um insistente arauto da soberania de Deus, a
quem, unicamente, é devida a glória. Por outro lado, a ênfase
da Reforma no sacerdócio universal das pessoas que creem, fez
jus à compreensão de que todo ser humano, sem qualquer
exceção, é criatura à imagem do próprio Deus, gozando,
portanto, de uma dignidade que não pode ser violada por
pretexto algum.
• Em perspectiva histórica, alguns séculos não constituem um
longo caminho que levou dessa fundamental redescoberta
evangélica por parte da Reforma até o advento da modernidade
e um ordenamento cultural e político democrático, que inclui
essencialmente a afirmação dos direitos humanos. Em termos
políticos, é igualmente essencial a possibilidade regrada da
alternância do poder, através de eleições livres e universais.
• Estabeleceu-se também a divisão entre três poderes – o
executivo, o legislativo e o judiciário –, que devem atuar de
forma independente e harmônica, o que não é
particularmente fácil de se concretizar, mas é essencial para
o necessário equilíbrio, complementação e correção mútua.
Isso não significa que a democracia seja um sistema
perfeito, longe disso. A fé cristã sabe que todo e qualquer
sistema político será sempre precário, quando comparado
com o Reino de Deus, e está sujeito, como tudo o mais, à
tentação do poder arbitrário e do mal que venha a ser
infligido às pessoas e a grupos mais vulneráveis. Por isso
mesmo, a tarefa permanente da comunidade cristã e das
igrejas é a de vigilância diante do arbítrio e de
solidariedade com quem seja injustiçado e oprimido.
• No entanto, apesar das limitações e falhas no exercício da democracia,
não há qualquer razão para propugnarmos por um retorno a tempos e
modelos de tempos passados, muito menos a chamados “períodos de
exceção”, eufemismo para regimes ditatoriais que afastam a
indispensável e irrestrita observância dos direitos humanos e que
impõem à maioria da população a vontade de minorias detentoras do
poder de finanças e armas. Ao contrário, as mazelas que podem ser
registradas, como a corrupção, as desigualdades sistêmicas e as odiosas
discriminações à base de preconceitos de gênero, de raça e de religião,
precisam ser superadas pelos próprios meios que um ordenamento
democrático propicia e deveria garantir, quais sejam, com observância de
preceitos legais, a livre expressão da vontade popular, nos meios de
comunicação, em demonstrações pacíficas e em eleições seguras. Foi
muito sábia, além de espirituosa, a observação do ex-primeiro-ministro
conservador da Grã-Bretanha, Winston Churchill: “A democracia é o pior
dos regimes políticos, com exceção de todos os demais…” Logo, precisa
ser preservada.
• Justamente porque, em tese, um ordenamento democrático
propicia e garante o bem comum, ele, na prática, também está
sempre sujeito à tentativa de ação deletéria por parte de
forças detentoras de privilégios, que não desejam
compartilhar suas benesses com setores que não têm acesso a
elas. Inclusive, é comum ver as forças com intentos ditatoriais
aproveitarem-se dos mecanismos inerentes à própria
democracia, para solapá-la e, quando possível, destruí-la. Daí
a necessidade da vigilância permanente da cidadania e das
instituições, sobretudo quando o sistema democrático de
direito é atacado em suas bases. As igrejas não têm razão
evangélica legítima para se eximir dessa responsabilidade.
• Cheguemos ao Brasil. A partir da proclamação de República,
em 1889, nosso país encetou o esforço de construção de
uma democracia, de forma precária a princípio, mas ainda
assim significativa. Nem por isso deixou de ser atacada e
mesmo suprimida com intervenções ditatoriais mais de
uma vez. Isso deveria nos atentar para o fato de que
tampouco hoje podemos dar por garantido o estado
democrático de direito. E não pode haver dúvida de que,
inclusive com reflexos nefastos no próprio interior das
igrejas, esse estado democrático de direito vem sendo
recentemente atacado por dentro com cada vez mais vigor,
de modo que a necessidade de vigilância e resistência se
fazem cada vez mais necessárias.
• Se momentaneamente esses ataques e tentativas de
supressão de pilares essenciais à democracia
recuam, não há nenhuma garantia de que não
voltem, com mais força inclusive, num futuro nada
distante. Em particular, teremos pela frente, uma
campanha eleitoral que poderá suscitar ações de
grande radicalidade e não há garantia alguma de que
sequer o resultado das eleições de 2022 venha a ser
acatado por todas as partes que as disputarão. Não
está totalmente fora do horizonte a possibilidade de
nova radical tentativa de quebra de nossa
democracia.
• Logo, será preciso aumentar a vigilância. É indispensável que o
ainda frágil estado democrático de direito do Brasil seja
defendido, preservado e fortalecido. É imperioso erguer a voz
nesse sentido. E as igrejas não podem se eximir da
responsabilidade de serem arautos da justiça e da paz, a partir
dos valores supremos que conhecem do Reino de Deus.
Infelizmente, não poucas igrejas, em grande parte em busca de
proveitos próprios, têm se aliado às forças antidemocráticas,
constituindo-se até mesmo em espécie de porta-bandeiras
dessas forças. Felizmente há no seio das igrejas também outras
vozes que têm alertado para os graves riscos que nosso país está
correndo – são, contudo, menos do que poderiam e deveriam ser.
Outras vozes mais precisam erguer-se, com clareza, em defesa do
estado democrático de direito.
• Em Apocalipse 3.14-22, o Apóstolo admoesta a igreja em
Laodiceia, conclamando-a ao arrependimento, necessário
por ela não ser, no dizer bíblico, nem fria nem quente, mas
simplesmente morna. “Quem dera fosses frio ou quente!”
(v. 16) Subentende-se que ser quente seria a opção correta
e ser frio uma equivocada, mas a pior opção de todas é ser
morno e insosso. Analogamente, podemos dizer em relação
ao contexto que estamos abordando, que a alternativa
evangélica correta e necessária é erguer a voz em defesa do
estado democrático de direito. E também: no atual
momento brasileiro, o silêncio funciona como suporte aos
ataques que são desferidos contra a democracia.
Concluímos: definitivamente, o silêncio não é, de forma
alguma, alternativa evangélica legítima.

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